Uma sátira da paranoia pop customizada do século XXI no filme 'Something in the Dirt'
O século XX foi um século paranoico: Guerra Fria, conspirações nucleares, agências de espionagem etc. E quem eram os sujeitos das conspirações? Ou era o Capitalismo ou o Comunismo. “A verdade está lá fora”, pôster icônico da série Arquivo X, foi a preparação para um novo tipo de paranoia que invadiria o século XXI: a paranoia pop, sem um sujeito determinado: podem ser sociedades secretas, grays, globalistas, satanistas ou qualquer coisa oculta – Sequência Fibonacci, Código da Vinci, números pitagóricos etc. Conspirações customizadas, inclusive para fins de extremismo político de direita. O filme indie “Something in the Dirt” (2022) é uma parodia dessa paranoia pop: uma dupla pretende explicar “racionalmente” os estranhos acontecimentos telecinéticos que ocorrem em um pequeno apartamento. E decidem transformar essa busca em vídeos na internet. Ganhar algum dinheiro ou fama, enquanto tentam encontrar conexões entre, por exemplo, um cristal que levita, a Sequência Fibonacci e o mapa da cidade de Los Angeles. Mas será que serão inteligentes o suficiente para criar sua própria toca de coelho?
O século passado foi o século das conspirações políticas: a ideologia da classe dominante, Aparelhos Ideológicos de Estado, a História contada pelo ponto de vista dos vencedores, a sociedade do espetáculo etc. Eram expressões que procuravam pensar as conspirações sempre através do eixo político da luta de classes ou da Guerra Fria.
Linguística, semiótica, semiologia, materialismo histórico, leitura crítica das mídias, entre outras, foram técnicas mobilizadas para interpretar e ver além do mundo das aparências ideológicas, os verdadeiros mecanismos de repressão, segregação e cooptação dos poderes dominantes da classe dominante.
Porém, no final de século e a virada para o novo milênio uma série de fatores fizeram mudar a natureza da paranoia – ela acabou se tornando um imã que atrai cada vez mais destroços e refugos de uma cultura pós-moderna, acumulando coincidências e padrões aleatórios que sempre apontam para desígnios ocultos genéricos e indeterminados. A paranoia começou a se transformar num buraco negro capaz de engolir a lucidez e o discernimento, e até a própria noção de realidade através de processos psíquicos de negação ou dissonância cognitiva – como bem demonstraram filmes recentes como Não Olhe Para Cima (2021), The Seed (2021) ou Não! Não Olhe! (2022).
Desde aquele poster na parede do escritório do agente Fox Mulder (“A Verdade está lá Fora”), de Arquivo X, uma das séries de TV mais paranoicas já feitas, algo mudou na natureza da paranoia: deixou o campo estrito da política e seus iniciados, para se tornar pop e irresistível: Estado Profundo, sociedades secretas, Área 51, alienígenas grays, Homens de Preto, helicópteros negros etc. Do escritor Dan Brown aprofundando-se nos simbolismos secretos do Vaticano até a profunda paranoia noir de Scorsese no filme A Ilha do Medo (2010), não demorou muito para esse novo zeitgeist paranoico ser apropriado pelo novo extremismo de direita (alt-right) nos fóruns e comunidades da Deep Web. Até ser criada a mãe de todas as conspirações do século XXI (o “QAnon”) que elegeria Trump presidente.
O filme Something in the Dirt (2022) é uma dessas pequenas surpresas estranhas, escondidas nos cantos de festivais de cinema, pequenas pérolas escorregadias difíceis de categorizar – uma mistura ambiciosa de comédia contracenada unicamente por dois personagens em um longo quebra-cabeças paranoico. Um típico filme DIY, com baixíssimo orçamento, mas que consegue capturar essa mudança de zeitgeist descrita acima.
Something in the Dirt é uma sátira surreal da paranoia. Pensamento conspiratório pop. Tudo ocorrendo dentro de um apartamento de aluguel baixo em algum lugar em Los Angeles chamado Laurel Canyon (onde mais poderia ser?... no bairro onde supostamente Frank Zappa e Jim Morrison teriam comandado a psyOp do movimento hippie) num clima apocalíptico que paira sobre a paisagem: helicópteros e aviões voando baixo, grossas fumaças de algum incêndio florestal, coiotes vagando pelas ruas...
“Los Angeles é uma festa de Halloween, só que nunca termina”, fala a certa altura um dos protagonistas que começa a testemunhar estranhos fenômenos de alguma natureza incerta ocorrendo no apartamento.
Uma dupla de amigos que busca algum tipo de reposta lógica para estranhos fenômenos. E ganhar algum dinheiro e fama no processo, ao transformar essa busca num documentário para postar na Internet como uma web série.
Um filme que começa em clássica narrativa ficcional para em vários momentos virar um mockumentary – uma narrativa em abismo em que os acontecimentos parecem virar um making off de um documentário que já foi produzido.
Por isso, as quase duas horas do filme é um desafio para o espectador: acompanhar o fio narrativo, tentar concatenar as teorias, recorrências e padrões num surreal pastiche de cultura pop recente. E a pergunta constante: há um mistério genuíno por trás de tudo? Ou tudo é apenas divertidamente inútil?
Ou acompanhamos apenas dois idiotas que buscaram significados ocultos em símbolos e acabaram encontrando o conforto da amizade?
O Filme
Something in the Dirt foi concebido é filmado durante a pandemia, o que é visível pelas condições de produção e ambientação quase inteiramente em um apartamento e no entorno próximo.
Acompanhamos Levi (Justin Benson), um bartender sem amigos ou família que alugou através da internet um pequeno apartamento vazio, com goteiras e sons estranhos ecoando pelo encanamento. No pequeno pátio do condomínio, ele conhece John (Aaron Moorhead), um cristão evangélico gay, recentemente divorciado e professor de matemática. Embora pareça estar desempregado.
Desde que John consiga lembrar, aquele apartamento sempre esteve vazio. Embora haja na soleira das portas e, em alguns cantos de paredes, enigmáticas fórmulas e equações escritas que parecem ser alguma coisa entre matemática pura e física. Presumivelmente rabiscadas por algum inquilino muito antigo.
Quase instantaneamente, coisas estranhas começam a acontecer no apartamento de Levi. Um objeto de cristal de quartzo (que Levi pensava que fosse um cinzeiro) começa a levitar sozinho, projetando prismas de luz na parede, lembrando a curva que representa a sequência numérica de Fibonacci. Há um armário emanando algum tipo de radiação eletromagnética e/ou condições de baixa gravidade. As coisas flutuam. De uma planta aleatória começa a brotar uma pequena fruta viscosa horrível – suspeitam de ser algum tipo de “fruto interdimensional”.
Levi e John são amigos há pouco menos de dez minutos. Tempo suficiente para serem sugados pelo mistério e tentar descobrir o que está acontecendo. Decidem documentar suas experiências num documentário, e talvez, poderem ganhar prêmios e algum dinheiro.
No começo, pensam em fenômenos sobrenaturais como telecinesia, fantasmas, poltergeist etc. Até serem sugados pelo buraco negro da paranoia pop para percorrerem um número infinito de caminhos do parque temático conspiratório envolvendo Proporção Áurea, MK-Ultra (tão óbvio quanto Laurel Canyon), Síndrome de Jerusalém, Aldous Huxley, Código Morse, Pitágoras, sociedades secretas por trás de uma bizarra história do planejamento urbano de Los Angeles – seguindo a espiral da sequência de Fibonacci, que Levi encontra em ladrilhos, paredes e fachadas de edifícios da cidade.
Padrões numéricos, recorrências, simetrias, viram uma obsessão para a dupla de amigos e até para o espectador que tenta acompanhar cada informação ou “prova” descoberta ou teorizada pelas inúmeras linhas de diálogo.
Mas na verdade, aos poucos vamos desistindo de entender o fio da meada da espécie de “Teoria de Tudo” que buscam: como sempre, não há sentido e nada funciona, como em toda boa conspiração pop. O que funciona mesmo é a amizade que cada vez fica mais forte entre Levi e John – eles o tempo inteiro compartilham cigarros, trocam ideias e se inspiram.
Aos poucos, começamos a compreender que a diversão em Something in the Dirt não é encontrar uma lógica entre as conexões malucas que os protagonistas tentam provar. O divertido é vê-los pensando em voz alta, um para o outro. As ironias, piadas e observações cínicas.
Uma história paralela, e mais real, corre por trás das delirantes especulações: Levi e John são perfeitos estranhos, “losers” e com diferentes graus de sociopatia: Levi, sem amigos, família e que acaba sendo demitido do seu emprego de bartender; John, recém-divorciado e um matemático solitário que passa o tempo sentado no pequeno pátio do condomínio.
O documentário que pretendem fazer (e que se confunde com o próprio filme que assistimos) está cada vez mais confuso, carece de roteiro e planejamento. Divagam, enquanto tentam, sem sucesso, fazer os equipamentos de captação de áudio e imagem funcionarem corretamente. Levi e John formam uma dupla totalmente disfuncional.
Paranoia gnóstica e narcísica – Alerta de Spoilers à frente
Já próximo do final, numa cena de desentendimento entre os amigos que caem em si que nada do que estão fazendo tem algum sentido, o filme tem a linha de diálogo matadora que conclui as quase duas horas de elocubrações aleatórias:
Levi: São como você e eu... um deles manipulando o outro e indo para uma toca de coelho que leva para lugar nenhum. E o outro vem só para ir junto com ele. Porque ele só quer acreditar em algo diferente da sua vida real.
John: Talvez a vida do cúmplice não fosse tão merda se ele fosse inteligente o suficiente para cavar sua própria toca de coelho.
“Porque ele só quer acreditar em algo diferente da vida real”. Nessa frase talvez esteja uma síntese da motivação por trás de toda essa paranoia pop que invadiu o século XXI: a busca da “verdade que está lá fora” nos faz esquecer o tédio da vida real que está aqui dentro.
Levi e John são dois losers insociáveis, insatisfeitos consigo mesmos, e que, por isso, buscam algum padrão, recorrência ou harmonia conspiratória (em números, símbolos etc.) em alguma realidade paralela que os faça escapar do próprio drama pessoal. Se a própria vida é caótica e sem sentido, deve haver algum sentido ou harmonia... lá fora!
Nessa linha de diálogo descrita acima, a dupla discute entre si, acusando-se mutuamente de manipulação. E John acrescenta outro fator que é decisivo na paranoia pop: “se você fosse inteligente, cavaria seu próprio buraco de coelho”. Ou seja, não seria arrastando pelas ondas das teorias da conspiração da moda – seja cultural ou de extremismo político.
Do ponto de vista do Gnosticismo, a paranoia é um dos estados alterados de consciência (ao lado da suspensão e melancolia – clique aqui) que permitiria criar as condições para a insurgência da gnose. Claro que essa paranoia gnóstica não se confunde com a paranoia pop satirizada por Something in the Dirt: a paranoia narcísica. É um tipo de paranoia puramente escapista e alienante. Por isso, utilizada atualmente como dispositivo semiótico de guerra híbrida por parte do extremismo de direita – de conspirações QAnon à tecnologia HAARP de manipulação do clima que supostamente faria cair dilúvios somente em locais das manifestações “patriotas” em frente aos quartéis no Brasil.
Ficha Técnica |
Título: Something in the Dirt |
Diretor: Justin Benson e Aaron Moorhead |
Roteiro: Justin Benson |
Elenco: Aaron Moorhead, Justin Benson, Sarah Adina Smith |
Produção: Rustic Films |
Distribuição: XYZ Films |
Ano: 2022 |
País: Brasil |
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